quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Contos perdidos

Acordou ainda cedo com um infernal barulho no ouvido esquerdo. Um zumbido que teimava em não parar. Aquilo o estava deixando louco. Ainda há meses atrás, sem comida, água ou quaisquer meios dignos de sobrevivência, vinha se esgueirando da fúria do homem descontada sem dó na natureza. A guerra se espalhara sobre a terra e o homem agora era o lobo do próprio homem. O orgulho e a busca pelo poder sobrepujaram o que de bom havia na terra.

Sua cidade de origem havia sido bombardeada. A princípio por bombas que apenas devastaram prédios e demais estruturas. Depois, veio o gran finale, uma bomba que dizimou noventa e nove por cento das pessoas daquela cidade. O número de mortos aumentava a cada dia, as doenças proliferavam e não havia mais poder constituído para fazer valer as regras de convivência em harmonia e paz social. Era como um sonho ruim. Na verdade um pesadelo há muito descrito em livros, filmes, novelas e contos. Agora ele, leitor e cinéfilo doutrora, deparava-se com a nua e crua realidade.

Caos. Poucas pessoas vagavam pelas ruas em busca de mantimentos e água. O bem mais precioso da terra. Outrora, ele mesmo estragou este precioso líquido lavando o carro, varrendo calçada e casa. Nunca imaginou que um dia poderia passar por tamanha tribulação. Mal vestido, sujo e famélico, sem parentes ou aderentes que o pudessem socorrer. O que sobrara da sua cidade era apenas destroços, escombros e muita fumaça que ainda subia à atmosfera, fruto dos incêndios e da destruição em massa. Corpos estavam dentro dos restos das casas e logradouros. Tudo parecia um enorme pesadelo do qual ele queria se livrar o quanto antes, mas, nada adiantava. Estava ele em frente da pior realidade que um ser humano poderia enfrentar. Um cheiro fétido se espalhava no ar.

Logo ele sobrevivera. Porque? Não tinha dinheiro nem bens. Não nascera de família rica ou que tivesse melhores meios de existência nem era muito menos devoto religioso. Ao longo dos seu trinta anos, trabalhava honestamente numa pequena indústria gráfica, auxiliando os tipógrafos na confecção de panfletos, cartazes e outros meios de propaganda. Mas quis, ao que parece, uma força maior que ele fosse testemunha do ocaso. Força incompreensível permitiu que ele sobrevivesse em meio a essa hecatombe sem precedentes.

Nesta manhã, levava consigo, além de rotas roupas uma faca do tipo punhal, um revólver que encontrara nos destroços da casa vizinha, um cantil quase vazio, mas que ainda continha cerca de um terço d´água. O preciso líquido que levava era apenas suficiente para que o mesmo suportasse mais vinte e quatro ou com sorte, quarenta e oito horas de vida. Trazia um livro, ao que parecia, o item mais importante de seus apetrechos. Livro este que ensinava boas coisas, entre elas paz, amor e respeito ao próximo, assim como ao final, mostrava uma catástrofe generalizada.

Vagou em meio a via principal entre carros por horas, cadáveres e chamas que não cessavam. Ao longe, choro e ranger de dentes. Nada podia ser feito. O caminho a ser percorrido era longo. Na verdade, vagou sem destino. Apenas procurava água e comida e além disso um abrigo para que pudesse passar mais uma noite longe do perigo que o circundava.

Nesta viagem, por volta do meio dia, comeu restos de carne um animal morto encontrada no meio da rua cozidas pelo fogo. Sorveu mais um gole de água e agora, quase no final. Não sabia mais o que fazer. Nada havia.

Depois de caminhar durante todo o dia. Viu um arranha-céu, carcomido pelas explosões, mas que conservava ainda, nos últimos andares, espaço aparentemente seguro. Subiu vacilante. As vozes ficaram para trás. A noite caíra e o céu, mesmo diante da hecatombe, parecia radiante. Podia contar em meio a fumaça e ao cheiro forte que exalava das ruas, as constelações, entre elas o cruzeiro do sul. Corpos fétidos pelos andares. Subiu vinte lances de escadas em meio à escuridão. Entrou em um apartamento. A sua frente o mar. O cheiro do sal. Afastou cuidadosamente os corpos que estavam ainda naquele local. Procurou água. Nada. No cantil pouco havia e decidiu poupar para a jornada do dia seguinte.

Deitou-se no sofá , agradeceu a Deus por ainda estar vivo, leu um trecho do livro e pegou no sono, e como em todos os dias, desejou de todo o coração, que aquele pesadelo acabasse depois dessa noite de repouso.

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